quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O prazer da leitura - Rubem Alves


imagem google

Rubem Alves
Gaiolas ou Asas – A arte do voo ou a busca da alegria de aprender
Porto, Edições Asa, 2004

Excertos adaptados


Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de "alfabeto". "Alfabeto" é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem. É a mesma coisa que "abecedário". A palavra "alfabeto" é formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego: "alfa" e "beta". E "abecedário", com a junção das quatro primeiras letras do nosso alfabeto: "a", "b", "c" e "d". Assim sendo, pensei a possibilidade engraçada de que "abecedarizar", palavra inexistente, pudesse ser sinónimo de "alfabetizar"...

"Alfabetizar", palavra aparentemente inocente, contém a teoria de como se aprende a ler. Aprende-se a ler aprendendo-se as letras do alfabeto. Primeiro as letras. Depois, juntando-se as letras, as sílabas. Depois, juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...

E assim era. Lembro-me da criançada a repetir em coro, sob a regência da professora: "bê-á-bá; bê-e-bê; bê-i-bi; bê-ó-bó; bê-u-bu"... Estou a olhar para um postal, miniatura de um dos cartazes que antigamente se usavam como tema de redacção: uma menina deitada de bruços sobre um divã, queixo apoiado na mão, tendo à sua frente um livro aberto onde se vê "fa", "fe", "fi", "fo", "fu"...

Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras, imagino que o ensino da música se deveria chamar "dorremizar": aprender o dó, o ré, o mi... Juntam-se as notas e a música aparece! Posso imaginar, então, uma aula de iniciação musical em que os alunos ficassem a repetir as notas, sob a regência da professora, na esperança de que, da repetição das notas, a música aparecesse...

Todo a gente sabe que não é assim que se ensina música. A mãe pega no bebé e embala-o, cantando uma canção. E a criança percebe a canção. O que o bebé ouve é a música, e não cada nota, separadamente! E a evidência da sua compreensão está no facto de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada sabendo sobre notas!

Eu aprendi a gostar de música clássica muito antes de saber as notas: a minha mãe tocava-as ao piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente depois, já fascinado pela música, fui aprender as notas – porque queria tocar piano. A aprendizagem da música começa como percepção de uma totalidade – e nunca com o conhecimento das partes.

Isto é verdadeiro também sobre aprender a ler. Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a história. A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer. A criança volta-se para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está a ler.

Num primeiro momento, as delícias do texto encontram-se na fala do professor. Usando uma sugestão de Melanie Klein, o professor, no acto de ler para os seus alunos, é o "seio bom", o mediador que liga o aluno ao prazer do texto. Confesso nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise sintáctica. Não foi nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas lembro-me com alegria das aulas de leitura. Na verdade, não eram aulas. Eram concertos. A professora lia, interpretava o texto, e nós ouvíamos, extasiados. Ninguém falava.

Antes de ler Monteiro Lobato, eu ouvi-o. E o bom era que não havia exames sobre aquelas aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa da leitura – experiência vagabunda! – e a experiência de ler a fim de responder a questionários de interpretação e compreensão. Era sempre uma tristeza quando a professora fechava o livro...

Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro aberto, a ler para o filho... Essa experiência é o aperitivo que ficará para sempre guardado na memória afectiva da criança. Na ausência da mãe ou do pai, a criança olhará para o livro com desejo e inveja. Desejo, porque ela quer experimentar as delícias que estão contidas nas palavras. E inveja, porque ela gostaria de ter o saber do pai e da mãe: eles são aqueles que têm a chave que abre as portas de um mundo maravilhoso!

Roland Barthes faz uso de uma linda metáfora poética para descrever o que ele desejava fazer, como professor: maternagem – continuar a fazer aquilo que a mãe faz. É isso mesmo: na escola, o professor deverá continuar o processo de leitura afectuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: Por favor, ensine-me! Eu quero poder entrar no livro por minha própria conta...

Toda a aprendizagem começa com um pedido. Se não houver o pedido, a aprendizagem não acontece. Há aquele velho ditado: É fácil levar a égua até ao meio do ribeirão. O difícil é convencer a égua a beber. Traduzido pela Adélia Prado: Não quero faca nem queijo. Quero é fome. Metáfora para o professor.

Todo o texto é uma partitura musical. As palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a técnica, se ele desliza sobre as palavras, se ele está possuído pelo texto – a beleza acontece. E o texto apossa-se do corpo de quem ouve. Mas se aquele que lê não domina a técnica, se luta com as palavras, se não desliza sobre elas – a leitura não produz prazer: queremos logo que ela acabe.

Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê para que os seus alunos tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Só deveria ler aquele que está possuído pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser estabelecida nas nossas escolas a prática dos "concertos de leitura". Se há concertos de música erudita, jazz – por que não concertos de leitura? Ouvindo, os alunos experimentarão o prazer de ler.

E acontecerá com a leitura o mesmo que acontece com a música: depois de termos sido tocados pela sua beleza, é impossível esquecer. A leitura é uma droga perigosa: vicia... Se os jovens não gostam de ler, a culpa não é só deles. Foram forçados a aprender tantas coisas sobre os textos – gramática, usos da partícula "se", dígrafos, encontros consonantais, análise sintáctica – que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza musical do texto. E a missão do professor?

Acho que as escolas só terão realizado a sua missão se forem capazes de desenvolver nos alunos o prazer da leitura. O prazer da leitura é o pressuposto de tudo o mais. Quem gosta de ler tem nas mãos as chaves do mundo. Mas o que vejo a acontecer é o contrário. São raríssimos os casos de amor à leitura desenvolvido nas aulas de estudo formal da língua.

Paul Goodman, controverso pensador norte-americano, diz: Nunca ouvi falar de nenhum método para ensinar literatura (humanities) que não acabasse por matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto pela literatura tem dependido de milagres aleatórios que são cada vez menos frequentes.

Vendem-se, nas livrarias, livros com resumos das obras literárias que saem nos exames. Quem aprende resumos de obras literárias para passar, aprende mais do que isso: aprende a odiar a literatura.

Sonho com o dia em que as crianças que lêem os meus livrinhos não terão de analisar dígrafos e encontros consonantais e em que o conhecimento das obras literárias não seja objecto de exames: os livros serão lidos pelo simples prazer da leitura.

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