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Rubem Alves
Gaiolas ou Asas – A arte do voo ou a busca da alegria de aprender
Porto, Edições Asa, 2004
Excertos adaptados
Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de "alfabeto".
"Alfabeto" é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa
certa ordem. É a mesma coisa que "abecedário". A palavra
"alfabeto" é formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego:
"alfa" e "beta". E "abecedário", com a junção das
quatro primeiras letras do nosso alfabeto: "a", "b",
"c" e "d". Assim sendo, pensei a possibilidade engraçada de
que "abecedarizar", palavra inexistente, pudesse ser sinónimo de
"alfabetizar"...
"Alfabetizar", palavra aparentemente inocente, contém a teoria de
como se aprende a ler. Aprende-se a ler aprendendo-se as letras do alfabeto.
Primeiro as letras. Depois, juntando-se as letras, as sílabas. Depois,
juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...
E assim era. Lembro-me da criançada a repetir em coro, sob a regência da
professora: "bê-á-bá; bê-e-bê; bê-i-bi; bê-ó-bó; bê-u-bu"... Estou a
olhar para um postal, miniatura de um dos cartazes que antigamente se usavam
como tema de redacção: uma menina deitada de bruços sobre um divã, queixo
apoiado na mão, tendo à sua frente um livro aberto onde se vê "fa",
"fe", "fi", "fo", "fu"...
Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras, imagino que o ensino da
música se deveria chamar "dorremizar": aprender o dó, o ré, o mi...
Juntam-se as notas e a música aparece! Posso imaginar, então, uma aula de
iniciação musical em que os alunos ficassem a repetir as notas, sob a regência
da professora, na esperança de que, da repetição das notas, a música
aparecesse...
Todo a gente sabe que não é assim que se ensina música. A mãe pega no bebé e
embala-o, cantando uma canção. E a criança percebe a canção. O que o bebé ouve
é a música, e não cada nota, separadamente! E a evidência da sua compreensão
está no facto de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada sabendo sobre
notas!
Eu aprendi a gostar de música clássica muito antes de saber as notas: a minha
mãe tocava-as ao piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente depois,
já fascinado pela música, fui aprender as notas – porque queria tocar piano. A
aprendizagem da música começa como percepção de uma totalidade – e nunca com o
conhecimento das partes.
Isto é verdadeiro também sobre aprender a ler. Tudo começa quando a criança
fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as
letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a história. A aprendizagem da
leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança
escuta com prazer. A criança volta-se para aqueles sinais misteriosos chamados
letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o
mundo das delícias que moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao
prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está a ler.
Num primeiro momento, as delícias do texto encontram-se na fala do professor.
Usando uma sugestão de Melanie Klein, o professor, no acto de ler para os seus
alunos, é o "seio bom", o mediador que liga o aluno ao prazer do
texto. Confesso nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise
sintáctica. Não foi nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas lembro-me
com alegria das aulas de leitura. Na verdade, não eram aulas. Eram concertos. A
professora lia, interpretava o texto, e nós ouvíamos, extasiados. Ninguém
falava.
Antes de ler Monteiro Lobato, eu ouvi-o. E o bom era que não havia exames sobre
aquelas aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a
experiência prazerosa da leitura – experiência vagabunda! – e a experiência de
ler a fim de responder a questionários de interpretação e compreensão. Era sempre
uma tristeza quando a professora fechava o livro...
Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro aberto, a ler para o
filho... Essa experiência é o aperitivo que ficará para sempre guardado na
memória afectiva da criança. Na ausência da mãe ou do pai, a criança olhará
para o livro com desejo e inveja. Desejo, porque ela quer experimentar as
delícias que estão contidas nas palavras. E inveja, porque ela gostaria de ter
o saber do pai e da mãe: eles são aqueles que têm a chave que abre as portas de
um mundo maravilhoso!
Roland Barthes faz uso de uma linda metáfora poética para descrever o que ele
desejava fazer, como professor: maternagem – continuar a fazer aquilo
que a mãe faz. É isso mesmo: na escola, o professor deverá continuar o processo
de leitura afectuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: Por
favor, ensine-me! Eu quero poder entrar no livro por minha própria conta...
Toda a aprendizagem começa com um pedido. Se não houver o pedido, a
aprendizagem não acontece. Há aquele velho ditado: É fácil levar a égua até
ao meio do ribeirão. O difícil é convencer a égua a beber. Traduzido pela
Adélia Prado: Não quero faca nem queijo. Quero é fome. Metáfora para o
professor.
Todo o texto é uma partitura musical. As palavras são as notas. Se aquele que
lê é um artista, se ele domina a técnica, se ele desliza sobre as palavras, se
ele está possuído pelo texto – a beleza acontece. E o texto apossa-se do corpo
de quem ouve. Mas se aquele que lê não domina a técnica, se luta com as palavras,
se não desliza sobre elas – a leitura não produz prazer: queremos logo que ela
acabe.
Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê para que os seus alunos tenham
prazer no texto, tem de ser um artista. Só deveria ler aquele que está possuído
pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser estabelecida nas nossas
escolas a prática dos "concertos de leitura". Se há concertos de
música erudita, jazz – por que não concertos de leitura? Ouvindo, os alunos
experimentarão o prazer de ler.
E acontecerá com a leitura o mesmo que acontece com a música: depois de termos
sido tocados pela sua beleza, é impossível esquecer. A leitura é uma droga
perigosa: vicia... Se os jovens não gostam de ler, a culpa não é só deles.
Foram forçados a aprender tantas coisas sobre os textos – gramática, usos da
partícula "se", dígrafos, encontros consonantais, análise sintáctica
– que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza
musical do texto. E a missão do professor?
Acho que as escolas só terão realizado a sua missão se forem capazes de
desenvolver nos alunos o prazer da leitura. O prazer da leitura é o pressuposto
de tudo o mais. Quem gosta de ler tem nas mãos as chaves do mundo. Mas o que
vejo a acontecer é o contrário. São raríssimos os casos de amor à leitura
desenvolvido nas aulas de estudo formal da língua.
Paul Goodman, controverso pensador norte-americano, diz: Nunca ouvi falar de
nenhum método para ensinar literatura (humanities) que não acabasse por
matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto pela literatura tem dependido de
milagres aleatórios que são cada vez menos frequentes.
Vendem-se, nas livrarias, livros com resumos das obras literárias que saem nos
exames. Quem aprende resumos de obras literárias para passar, aprende mais do
que isso: aprende a odiar a literatura.
Sonho com o dia em que as crianças que lêem os meus livrinhos não terão de
analisar dígrafos e encontros consonantais e em que o conhecimento das obras
literárias não seja objecto de exames: os livros serão lidos pelo simples
prazer da leitura.